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Artigo

Como os algoritmos substituíram o papel social do CD emprestado

O que mudou no consumo de música desde a ascensão dos algoritmos?

Dependendo da sua idade, pode ser que o título deste artigo não faça muito sentido. Afinal, já faz um bom tempo desde que os CDs passaram de artigo de sobrevivência urbana a itens de colecionador. Até meados dos anos 2000, mesmo com a ascensão da música digital e das plataformas e dispositivos que serão abordados a seguir, ouvir, colecionar e emprestar CDs eram práticas comuns no cotidiano de todo fã de música. O que mudou desde então? Novamente, dependendo da sua idade, os parágrafos a seguir podem conter uma boa dose de nostalgia.

Curadoria de conteúdo, downloads ilegais e amizades musicais

Numa época em que não havia Spotify, YouTube e tanta facilidade de acesso a conteúdo, conhecer novas bandas e artistas dependia basicamente de três prazerosas tarefas: ouvir rádio, assistir MTV e trocar indicações com seus amigos e amigas. Portanto, havia certo papel social no ato de emprestar um CD a alguém e dizer “ei, escute esse álbum depois e me diz o que achou, principalmente da música 7. Acho que você vai gostar.” E lá íamos nós. Fones no ouvido, discman na mochila e ok music play.

Neste cenário, identificamos um exemplo prático de curadoria de conteúdo e apresentação de materiais relacionados de uma pessoa a outra. Mais que uma demonstração de apreço, era uma possibilidade de expandir repertório cultural, formar ou consolidar preferências e, talvez, descobrir a melhor banda dos últimos tempos da última semana. Pelo menos até o lançamento e eventual empréstimo de um novo álbum.  Além da loja de discos, a figura do “amigo musical” marcou época pra muita gente que foi jovem no mundo pré-internet, inclusive inspirando livros e filmes como por exemplo a obra Alta Fidelidade, excelente nos dois formatos.

Foto: Reprodução

Modelo clássico de MP3 player: só quem viveu sabe.

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Estou usando o CD como representação física para a troca, mas esse costume permaneceu quando os iPods, MP3 e MP4 players dominaram o mercado, juntamente com a pirataria digital via download. Nessa nova fase, ao invés de comprar um CD original e fazer diversas cópias, ou comprar logo um piratão na loja da esquina, era comum levar o MP3 player de algum amigo para casa e salvar novas músicas baixadas recentemente, enquanto a outra pessoa fazia o mesmo. Comunidades do Orkut como a Discografias, sites como o 4shared e inúmeros blogspots com links pouco confiáveis para baixar músicas eram paradas obrigatórias entre uma conversa e outra no MSN, enquanto o Winamp tocava no plano de fundo.

Minha obsessão por rock alternativo começou assim. Em 2008, primeiro ano de faculdade, o fundador e editor-chefe do site, Lucas, levou meu eclético MP4 com músicas que iam de Linkin Park a Victor & Leo (?), e o devolveu alguns dias depois, completamente lotado. Foi quando comecei a ouvir The Strokes, Weezer, The Smiths, Radiohead, The Mars Volta e outras tantas indicações vindas de uma amizade musical que já dura quase duas décadas. Daí em diante, nosso círculo de amigos compartilhava novas descobertas de bandas quase que diariamente, a partir das preferências em comum. Quase um sistema de algoritmos humanos. Por falar nisso, como os algoritmos de verdade substituíram o papel social do CD emprestado, afinal?

Foto: Reprodução

Imagens que são uma viagem no tempo: tela do saudoso Winamp, reprodutor de mídia para PCs.

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Meu amigo, o algoritmo: o perigo e a beleza dessa relação homem-máquina

Corta para 2021. CDs e vinis ainda existem, mas são itens de coleção com alto valor afetivo e baixa possibilidade de compartilhamento. Baixar músicas não é mais necessário, porque há mais conteúdo disponível nos serviços de streaming do que poderíamos ouvir em uma vida multimilenar. Na verdade, sobram opções. O Spotify anunciou recentemente que existem mais de 70 milhões de músicas na plataforma e que cerca de 60 mil novas faixas são inseridas diariamente. Números absurdos.

É em meio ao excesso que surge a figura dele, nosso amigo complexo e indispensável. Ele que nos conhece como ninguém e que está sempre à disposição para nos dizer o que assistir, o que comprar, o que ouvir: o algoritmo. Obviamente, essa ferramenta presente nos bastidores da Netflix, do Instagram, do Spotify e praticamente em todo grande serviço digital atualmente não é a única responsável pelos hábitos de consumo do público, mas é uma das protagonistas.

Não é preciso ser especialista em estatística e programação para entender como tudo funciona: a partir do que você faz ou deixa de fazer ao utilizar as plataformas, o algoritmo mapeia padrões e otimiza sua experiência, recomendando conteúdos adequados às suas preferências, ocultando aqueles que parecem incoerentes com o seu perfil e garantindo, assim, que a probabilidade de consumo aumente. Quem não quer mais de algo que já conhece bem e gosta muito? É o princípio da familiaridade.

Foto: Reprodução/The Weeknd

Enquanto algumas músicas atingem bilhões de execuções, milhões de faixas no Spotify nunca foram ouvidas sequer uma vez. Assim nasceram iniciativas como o Forgotify.

Há um lado perigoso nessa relação que já é tema de debates em várias disciplinas, do marketing à psicologia. Um dos riscos mais abordados é a criação das chamadas bolhas sociais, isto é, a tendência de interagir apenas com pessoas e conteúdos semelhantes, sem abertura para absorver referências diferentes das habituais. Quando você restringe o horizonte de possibilidades, você limita as chances de encontrar coisas novas. Você e o algoritmo, seu fiel escudeiro. Isso vale para política, trabalho e também para música. Quanto mais do mesmo, mais do mesmo.

Porém, como tudo na vida, há dois lados no papel dos algoritmos e um deles é positivo, em minha opinião. As relações humanas na era digital têm se tornado cada vez mais frágeis e líquidas. Não sou eu quem está dizendo isso, foi Zygmunt Bauman, um dos maiores sociólogos da história. Eu ainda sou amigo dos meus amigos musicais da faculdade, por exemplo, mas já faz anos desde a última vez que trocamos indicações de novas bandas.

De modo geral, nos acostumamos a acompanhar os mesmos artistas, ouvir os mesmos álbuns. Há estudos e conceitos psicológicos que indicam que o consumo de novos conteúdos tende a diminuir após os 30 anos de idade, de música a vestuário, passando por padrões de beleza, temas de interesse etc. Certamente há exceções, mas a regra é essa.

Para quem gosta de explorar, além de uma postura proativa de pesquisa e curadoria em fontes confiáveis, as indicações não são apenas bem-vindas, mas muito necessárias. Com as tecnologias e estilos de vida que possuímos hoje, ninguém desempenha esse papel de indicador confiável melhor que os algoritmos. Eu acredito que nenhuma ferramenta ou tecnologia é inerentemente boa ou má, tudo depende do uso que fazemos dela. Em outras palavras, o algoritmo não é vilão se for bem utilizado.

@skatunenetwork

#stitch with @echovoxx all these bands deserve the world, it blows my mind they aren’t bigger #underrated #record #LP

♬ original sound – Skatune Network (They/Them)

Indicações humanas recebidas graças ao algoritmo.

Álbuns citados no vídeo:

Se a digitalização é inevitável, um toque de humanidade é imprescindível

Diante desse cenário, o que a gente pode fazer é manter a sensibilidade humana que não existe em nenhuma inteligência artificial, pelo menos por enquanto. Descobriu uma música boa por acaso no YouTube? Ótimo. Envie o link para alguém que também possa gostar. A playlist de descobertas da semana no Spotify trouxe algo que vale a pena ouvir no replay? Então compartilhe essa música nos seus stories, vai que alguém escuta. Nada como a sensação de ouvir uma futura música favorita pela primeira vez.

Encontrou um vídeo com indicações interessantes que provavelmente jamais chegariam até você se não fosse pelo “acaso” das redes sociais? Escreva um texto sobre compartilhamento de músicas e socialização em tempos líquidos. Bom, foi isso que eu fiz após assistir o vídeo acima, ouvir as recomendações e realmente gostar de 3 das 4 bandas indicadas. Se você curtir esse texto ou algum desses álbuns, não me agradeça. Agradeça o algoritmo.

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